Solidariedade humana:<br>opressão ou libertação?
Assinalou-se, a 20 de Dezembro, o Dia Internacional da Solidariedade Humana, uma data instituída pela ONU, desde 2005, por ocasião da celebração da primeira década para a Erradicação da Pobreza (1997- 2006). Decorridos dez anos, importa reflectir sobre o antagonismo de classe que está subjacente aos valores, conteúdos de acção e objectivos da solidariedade humana enquanto instrumento ao serviço da opressão e submissão dos explorados e oprimidos ou enquanto motor de acção e luta dos trabalhadores e dos povos por uma sociedade mais justa e solidária, pelo desenvolvimento e pela paz.
Na maioria dos casos confunde-se «solidariedade» com assistência
1. Nas últimas décadas, assumiu proporções escandalosas a contradição entre os notáveis avanços da ciência e o aprofundamento da regressão social – com o seu cortejo de horrores que atentam contra a vida e a dignidade humanas: a subnutrição, a fome, o desemprego, a pobreza, a falta de assistência médica e medicamentosa, a morte precoce, o trabalho infantil, o tráfico de seres humanos, o esclavagismo, a exploração na prostituição, a pedofilia, as consequências devastadoras das guerras e conflitos militares sobre povos e países provocados pelo imperialismo.
Realidades que resultam da natureza exploradora e predadora do sistema capitalista, cuja actual crise económica e financeira aprofundou a polarização e a destruição de direitos económicos, sociais, políticos, culturais e nacionais de muitos milhões de seres humanos.
Neste cenário, as instâncias europeias e mundiais desdobram-se na adopção de diversos instrumentos que, ardilosamente, são apresentados com o objectivo de reduzir a pobreza, de promover a igualdade de género, dos direitos das pessoas com deficiência ou o desenvolvimento sustentado, entre outros. A natureza dessas medidas não visa erradicar as causas destes flagelos, mas somente esconder as suas verdadeiras causas e encobrir as suas expressões mais visíveis e incómodas, colocando os estados ao serviço dos grandes grupos económicos e financeiros, privatizando tudo o que seja susceptível de maximizar o lucro.
As desigualdades na distribuição do rendimento, a desregulamentação das relações laborais, a desvalorização do trabalho e dos trabalhadores, o desemprego, a privatização de bens e serviços sociais – saúde, segurança social, educação, cultura, e a água, o esbulho dos recursos dos países, são assumidas como naturais e inevitáveis na sociedade. Tal é ocultado em atractivos objectivos e em «novos paradigmas». Trata-se de criar a ilusão de que é preciso tudo mudar, quando na prática pretendem manter tudo na mesma. Ou seja, manter intocável o sistema de domínio, de opressão e de exploração.
Neste quadro, ser solidário é centrar a acção individual no trabalho voluntário e na ajuda social enquanto se oculta, criminaliza ou estigmatiza uma outra forma de ser solidário, aquela que se organiza para lutar em defesa de direitos económicos, sociais, políticos e culturais e insere a sua intervenção num processo mais vasto de luta pela transformação política e social.
2. Nos últimos anos foram profusamente disseminados e incentivados valores de solidariedade humana, assentes na responsabilização individual e das organizações sociais aos que são atingidos pela fome, falta de vestuário, de livros escolares, de roupa, de medicamentos, entre outros. São promovidas campanhas usando os órgãos de comunicação social, as redes locais, a fixação de tarjetas em montras de lojas ou em escolas, apelando a que ninguém fique indiferente e seja solidário para quem mais precisa.
Aparentando uma justa e solidária divisão de esforços entre todos, a verdade é que, nesta sociedade, existem classes sociais diferentes e antagónicas. De um lado, encontra-se a grande maioria da população, fortemente penalizada pelo desemprego, pelos baixos salários e reformas, por uma política fiscal injusta, que diminui ainda mais os seus rendimentos, pelos aumentos das despesas com a saúde e a educação e pelos cortes nos apoios e prestações sociais, no âmbito da segurança social. E do outro lado, encontram-se os grandes grupos económicos e financeiros que beneficiam e lucram com todos estes sacrifícios impostos à maioria da população.
Esta concepção de Estado, assente numa lógica assistencialista e caritativa, não liberta nem libertará os pobres da situação de vulnerabilidade em que se encontram. Não obstante, ser cada vez maior a rede de pessoas e entidades que se propõem auxiliar, a verdade é que o número de pobres e dos excluídos não pára de aumentar.
E se tal acontece não é da responsabilidade dos que sentem a necessidade de ajudar quem mais precisa. Pelo contrário, é da natureza de classe das opções económicas e sociais que são tomadas pelos governos em coordenação com a União Europeia. Para estes a solidariedade é entendida não como uma forma de intervenção de emergência social, numa perspectiva conjuntural, mas antes como mecanismo permanente do amortecimento social perante as consequências das suas politicas de exploração, de destruição de direitos e de empobrecimento.
3. No actual quadro, é fundamental intervir para banir esta concepção do Estado que, subverte, completamente, os princípios e os valores da solidariedade humana, emanada da revolução de Abril e plasmada na Constituição da República Portuguesa.
A verdadeira dimensão da solidariedade consubstancia-se na exigência de reposição dos salários, das reformas e direitos roubados, na criação de emprego, no combate à precariedade, na adopção de uma política fiscal que tribute fortemente os grupos económicos e financeiros e alivie os impostos sobre os trabalhadores e os micro, pequenos e médios empresários. Na luta por uma política que accione eficazes mecanismos de prevenção da pobreza, que consolide as funções sociais do Estado enquanto direito de todos os portugueses à segurança social, à saúde, à educação, à cultura e à justiça.
Este é o caminho necessário para dar expressão à solidariedade que o povo e o País precisam. E que conta com o compromissso da acção e luta do PCP.